La Rabelada des Rabelados

Publié le par Pedro Miguel Cardoso

 
Misá
A Rabelada dos Rabelados
 
 
 
Aparece com aquele sorriso enorme de “menina do povo”, mas tem um olhar intenso de mulher. Maria Isabel Alves, ou simplesmente Misá, é uma figura tranquila, de gargalhada fácil e de pensamentos profundos, a quem dá gosto pegar na mão, olhar e falar em silêncio. Um silêncio como aquele que a Misá necessita para se encontrar com a sua arte e com os seus sentidos.
 
 
Nasceu na Praia mas cedo se mudou para Porto Madera, uma terra “sem carros, sem rádio”, sem nada a não ser as suas “nuvens”, encontrou o sentido das coisas nas histórias que Nha Eli lhe contava. Enquanto ouvia as personagens a ganhar vida na voz da mulher que a criou, a então “menina sossegada” permanecia (mais uma vez) em silêncio, traçando calmamente o seu projecto de vida. Nada linear, claro.

Foi durante esse período que a sua carreira de escultora e pintora começou a ganhar forma, como conta Misá nas suas “palavras-ritual”: “os sonhos que sonhava de dia, acordavam-me de noite. Via os desenhos a andar na minha cabeça, a transformarem-se e a ganharem forma de personagens com os pés compridos, com os pés curtos, coisas vivas que me perseguiram durante muito tempo”.

Com estes seres oníricos a quererem saltar do sonho para a tela, e assim adquirirem formas de badias ou dançarinas, Misá ingressou, em 1986, num curso de pintura na Costa do Marfim . Lá permaneceu um tempo, até sentir que era hora de seguir o seu caminho e de fazer “o que realmente queria” - pintar com as suas cores e consoante a sua vontade.

De personalidade forte, Misá realmente sempre fez aquilo que queria ainda que, por vezes, tal não se enquadrasse na “linha recta” que a sociedade lhe impunha. Assim, com apenas onze anos viajou até à Suíça, já ciente do rumo que pretendia tomar - viver naquele país uns tempos, encontrar um “marido africano”, ter quatro filhos rapazes, adoptar uma menina, divorciar-se aos trinta anos, e voltar então à sua terra para trabalhar pela cultura cabo-verdiana. Obra do acaso ou não, a profecia cumpriu-se. Aos trinta e dois anos, com quatro filhos rapazes e uma filha adoptiva, Misá terminava a relação com o seu marido africano. Duas horas depois de assinar os papéis do divórcio apanhava o avião para Cabo Verde, onde se dedicaria então a uma missão que a mergulharia no seio de um “povo de silêncios” - os Rabelados do Espinho Branco.
 
 
 

Missão cumprida

Oito anos e meio depois de ter chegado à comunidade dos rabelados, Misá recorda com orgulho a caminhada que empreendeu até Espinho Branco. Pé ante pé, com lápis de cor, tintas, pincéis e telas na mala, e uma sensibilidade especial nos gestos, a artista conquistou um lugar especial na aldeia.

A transformação começou, então. De uma sociedade hermeticamente fechada, os rabelados tornaram-se num exemplo de como a arte pode alargar horizontes e abrir portas. Com representantes espalhados por Itália, Alemanha, Suíça, França e proximamente no Luxemburgo, as “pinturas místicas que contam o quotidiano e as nossas histórias tradicionais”, projectam agora os rabelados, de uma forma positiva, para além do morro junto ao mar onde habitam.

Agora que a Aldeia da Arte Artesanal dos Rabelados de Santiago já funciona e caminha “pelos seus próprios pés”, Misá sente que está na hora de partir. No princípio do próximo ano viaja até à Cidade do Cabo, na África do Sul, onde pensa aprofundar a arte da escultura.

Mas a pintura continuará sempre a fazer parte de Misá, que se auto-retrata permanentemente nas suas badias estilizadas e nas dançarinas a que dá vida em explosão de cores, de sensualidade e irreverência. E porque é fiel à sua própria imagem interior, na tela como na vida real a artista caminha leve, sem pretensões, com a simplicidade e olhar atento daquela menina que se sentava em silêncio a ouvir histórias em Porto Madera.

Misá é um exemplo em como, estando longe do seu país, alguém pode manter as raízes bem fincadas na terra cabo-verdiana. Talvez pareça um contra-senso, mas são as impossibilidades que dão corda à sua vida, a qual compara com um “relógio que não faz a roda completa, que se distorce constantemente num caminho descontínuo”.

E é neste caminho que agora começa que ela se despe e se entrega, tal qual fez com os seus “amantes de todo o mundo” que deram origem a “escritos sobre paixões”. Assim, com aquele sorriso de “menina do povo” e olhar forte de mulher, rende-se novamente ao sossego, liberdade, paz e misticismo da sua arte.
 
 
 

Pedro Miguel Cardoso
 
 
 
 

 
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